* Por Aleksander Aguilar
Mas por que tantos quilômetros? - Pra chamar a atenção, respondi secamente. – E pra isso eram necessários tantos dias, tanta logística? – insistiu uma amiga francesa a quem envolvi na missão de trabalharmos juntos na produção de um documentário em vídeo, agora na fase de edição, da Marcha da Reforma Agrária do Século XXI. Humm, é, de fato. Questionamento tão simples quanto reverberante. Povão formado por quase mil personagens, estradas de Goiás afora, homem e mulher dos 8 aos 80, literalmente, durante quase 20 dias que – e não me venha com ceticismo quem nunca conversa com militantes de movimentos sociais, nem nunca participou de um ato – acreditam, com mais ou menos intensidade, na importância da mobilização social. E o que a final se transforma/transformou?
Caminhamos com quase mil trabalhadores e trabalhadoras rurais, de dez diferentes estados dessa república federativa, todos os mais de 200 km que separam Goiânia/GO de Brasília/DF. A atividade se iniciou no dia 21 de agosto, e voltamos a Recife no dia oito de setembro. Fizemos a assessoria de comunicação, produzindo releases quase diários, enviando-os a um amplo mailing list, buscando a cobertura fotográfica de cada dia de caminhada, de cada uma das dez cidades por onde a Marcha passou, de cada atividade e personalidade que bravamente caminhou todo esse trajeto. Mantivemos atualizado um blog de noticias da Marcha, mídias sociais como Twitter e Facebook e álbuns de fotos – que ainda não são os oficiais – no Picassa. Além do documentário.
Voltamos exaustos. Na verdade, agora passados mais de dez dias do fim do evento, recém começamos a botar a casa em ordem, pois até agora houve várias “broncas”, como o pessoal aqui em Pernambuco costuma a dizer, pra resolver. Logo no dia seguinte do retorno tínhamos um artigo para apresentar no Congresso da Associaçao Latino-americana de Sociologia (ALAS), que esse ano foi aqui em Recife. E o corre-corre incluiu temas pessoais (como tentar deixar o apartamento em ordem para a desejada visita da família, que coincidiu nessa época) e profissionais, que perpassa também as pendências, ainda existentes, estruturais e políticas decorrentes dessa jornada.
A parte prática dessa maratona se inicia com a chegada de Marie e Pau, que moram em Barcelona. Pousaram em Recife no dia 19 de agosto, no dia 20 voamos para Goiânia, no dia 21 se dá Ato de Inauguração, no dia 22 o começo efetivo da Marcha, numa boa “toada”, de apenas 34 km, diretos, sem pausa pra descanso...
Nos dias seguintes, o despertar geralmente às 4h da madrugada, ou mesmo mais cedo, para haver tempo de um café da manha antes de se estar em fila na estrada às 5h, e dessa forma evitar caminhar sob o sol mais forte do final da manhã no terrivelmente seco Estado de Goiás; respiramos pó e terra que chegam a sangrar o nariz. A variação de temperatura é de clima desértico: frio à noite, calor escaldante durante o dia. A companheirada dos estados do Nordeste, maior presença na Marcha, teve que se acostumar também a essa intempérie.
A massa alvirrubra (e não falo de torcida de futebol), enfileirada, para caminhar ou para comer o arroz-com-feijao de cada dia, com o passar do tempo começa a ganhar nomes, e há mais contato, mais empatia e troca de histórias. Há gente que só ao estar ali vivencia o mais longe que já foi na vida – nunca havia saído de seu Estado e nem de sua cidade; gente que se dedica a cuidar de meninas em risco de prostituição nas suas localidades; gente que trabalha com circo, que fez parte do trajeto em perna-de-pau; gente que canta e toca e quer fazer carreira como músico; gente que recolhe latas de alumínio e acredita que o paraíso deve ser construído aqui na Terra; gente que é atleta, em profissionalização, e até disputa índice olímpico para os Jogos de 2016; gente que mesmo aos 83 anos faz questão de caminhar todos os trechos de Marcha e sabe trabalhar com marretas de 20 kilos; gente que fica sem cobertor durante a noite para ceder-lo aos de fora que parecem ser menos acostumados às dificuldades; gente que planta com a família, que faz farinha de mandioca, que vende, semanalmente, na feirinha do agricultor da sua comunidade.
Uma impressão particular estrangeira, da “companheira Marie”, postada no seu blog, é pertinente:
É. Foi assim, numa média de 25 km caminhados por trecho que essa gente, a maioria em chinelos-de-dedo, marcou as manhãs de Goiás por mais de duas semanas com bandeiras vermelhas dos agricultores e agricultoras que defendem a luta por uma reforma agrária do século XXI – o projeto político do MLST.
MAIS QUE ROMPER CERCAS
Mas não, essa não é uma crônica romântica para afirmar o dinamismo de uma atividade desse porte, da vitória, do valor do sacrifício e da suposta consagração. Tampouco é uma descrição pessimista das dificuldades enfrentadas, senão uma reflexão quase óbvia, mas necessária, vinda da experiência direta como marchante e como parte de parte da organização, em uma atividade histórica, isso sim, no sentido literal da expressão, para um dos maiores movimentos de luta por reforma agrária do Brasil.
O Movimento de Libertação dos Sem-Terra (MLST) convocou e organizou essa Marcha. Se você não está habituado a temas políticos-agrários do país, perceba que, sim, o MLST e o MST são coisas diferentes. Eu tampouco sou um ativista da reforma agrária, particularmente, mas com uma história ligada à atenção para temas de organização popular, sei que um dos nós da questão (ou gargalos pra usar o jargão político, feinho, da moda no Brasil) é que há dezenas de grupos de luta pela terra no país, porém o MST (para o qual não é preciso abrir a sigla) detém uma espécie de “monopólio” do tema.
Pequeno exemplo: experimente digitar “luta pela terra no Brasil” no Google, e veja quantos resultados, só entre os primeiros, que incluem densos trabalhos acadêmicos, fazem referência direta ao MST. Esta é, sem dúvida, uma organização com uma história fenomenal, exaltada desde Antonio Candido a Eric Hobsbawm, uma indiscutível referência de movimento social e popular para o mundo. Possui uma tremenda estrutura, absolutamente high-profile (utilizando uma expressão gringa em deferência a própria ampla articulação internacional que o MST possui), que perpassa escolas, universidades, uma sólida institucionalização, inclusive.
Mas não é a única organização de luta pela terra no Brasil, não é a única proposta, não centraliza todas as idéias e alternativas para a questão agrária no país. Mesmo assim, para o conjunto da sociedade, ativismo pela reforma agrária é sinônimo de sem-terra, e sem-terra é sinônimo de MST. Não é por acaso que se ignora, dessa forma, uma diversidade de movimentos socioterritoriais, inclusive os de dimensão nacional, que possuem contribuições diferenciadas e igualmente importantes para o debate sobre a terra no Brasil. É verdade que entre esses muitos movimentos a maioria é regional, com atuações fortes em nível de estado. No caso do MLST, porém, a relativa invisibilidade, pelo menos em termos de grande mídia nacional, é ainda mais curiosa, porque o Movimento está organizado em dez estados da Federação e possui um aporte à questão agrária substancialmente – e pertinentemente – diferente da do MST. Isso é ainda revelador de uma situação que parece gerada de maneira consciente tanto pelos formadores de opinião política nessa mesma grande imprensa, como por atores políticos (e ai em nível partidário, no terceiro setor e entre os próprios movimentos populares) que fazem ou eco ao monopólio, ou vista grossa à diversidade de organizações de luta pela terra no Brasil – especialmente quando se trata de abordar suas propostas, suas pautas e contribuições que nem sempre se alinham com as do MST.
Ora, a questão da luta pela terra no Brasil é sempre abordada a partir da ótica do MST, e a referência aos outros movimentos, quando feita, é justamente apenas essa: “os outros movimentos populares”. Mesmo os meios de comunicação progressistas não costumam pautar essa diversidade. Muitos deles, aliás, possuem estrutura de financiamento em parceria com o próprio MST e assim seguem reproduzindo posições limitadas apresentadas como universais.
Senti isso, claro, durante a “Marcha da Reforma Agrária do Século XXI”. Buscar entender a proposta do MLST não foi agenda dos meios, não era de interesse nem dos “progressistas”. Era mais um evento de sem-terra, e não era nem do MST! Mais de mil pessoas caminhando mais de 200 km por mais de 20 dias. Haja estrutura! Haja coordenação! Haja organização! Por que tudo isso? Mas a abordagem midiática (de novo, mesmo a dos progressistas) era a de que algo de sem-terras estava ocorrendo para “chamar a atenção”. E só. Mas a atenção para o que? Para quem? Por que uma proposta de reforma agrária diferenciada da do MST deveria ser explorada? Em que consistiria o mote “reforma agrária do século XXI”? Quer dizer que existe proposta de reforma agrária para além da idéias do MST? Quais são? São pertinentes?
EU LUTO, NÓS LUTAMOS
Desde as lutas messiânicas ao cangaço, passando pelas Ligas Camponesas, a luta pela terra no Brasil nunca cessou. Desde as capitanias hereditárias até os latifúndios modernos – e o agronegócio – a estrutura fundiária, excludente e responsável por desigualdade social no país, vem sendo mantida. Neste cenário, a questão agrária tem se expressado por meio de tensões e confrontos, muitas vezes sangrentos, entre uma massa de despossuídos e os donos da terra quase sempre protegidos pelas leis e pelo Estado. Todo militante social sério tem presente este óbvio: a luta pela terra é fundamental para a efetiva democratização do país. Na década de 70, com os incentivos fiscais dados pelos militares a empresas colonizadoras no Norte e no Centro-Oeste explodiu a violência no campo. Nos anos 80, os sem-terra partem para a ofensiva, buscando a efetivação da reforma agrária pelas ocupações de latifúndios improdutivos, mudando a geografia do campo brasileiro, mobilizando o apoio da sociedade. É ai que o MST alcançou merecido protagonismo, pautou a questão agrária como determinante na política nacional. Mas sua concepção, como a de qualquer ator em qualquer campo da vida, tem limitações. Para o MST, o principal inimigo ainda é o grande latifúndio improdutivo, embora a organização afirma hoje ter uma grande preocupação com a produção nos assentamentos e com a questão ambiental.
Mas isso que o MST levanta hoje, o MLST tem no cerne da sua proposta desde sua fundação. O modelo de reforma agrária vigente foi superado; o principal inimigo não é mais o latifúndio improdutivo, mas sim o agronegócio que articula poderosos interesses econômicos, políticos e sociais, fazendo combate contra a reforma agrária. Uma nova forma de organização econômico-social do meio rural, com a implantação de Acampamentos Produtivos, Assentamentos Inteligentes, Pólos de Desenvolvimento e a Empresa Agrícola Comunitária, ou seja, com o foco na produção a partir de métodos agroecológicos, conforma uma Reforma Agrária do Século XXI que tem em essência a valorização do ser humano e a construção de uma vida digna no campo.
Foi com base nesse projeto que o MLST, cinco anos depois da grande polêmica do quebra-quebra no Congresso – que resultou na indevida, vexatória e mal-explicada condenação moral e penal do Movimento – retorna a Brasília, desta vez depois de uma longa e propositiva Marcha. A “Marcha da Reforma Agrária do Século XXI – Aperte a mão de quem o alimenta” foi uma pesada aposta política do MLST que se provou qualificadora e capacitante. O MLST chamou, organizou e conduziu mais de mil de seus militantes durante 20 dias através 200 km para dar voz e vez a sua pauta de propostas. Na semana de cinco a nove de setembro, depois da longa caminhada até a capital da república, a coordenação nacional do MLST teve uma maratona de reuniões diretamente com os titulares de pelo menos nove ministérios e órgãos federais, para apresentar sua agenda por uma concepção atualizada de reforma agrária, em dia com o século XXI, e ajudar a erradicar a pobreza no Brasil.
Por isso foram tantos quilômetros de pé na estrada, tantos dias de marcha, tanta estrutura e logística. Foi e é por uma causa, pela necessidade de uma reforma, pela importância de mostrar a pluralidade da luta pela terra no Brasil, de valorizar o agricultor familiar que no seu conjunto é responsável por mais de 70% da produção de alimentos no país. Foi e é um convite para que a sociedade brasileira aperte a mão desses trabalhadores e trabalhadoras, reconheça e se alie com quem ajuda a construir soberania nacional, e que o quê se transforme sejam as partes mesmas dessa sociedade, por um país mais justo e livre de miséria. Nós, que também nos transformamos, saudamos todos e todas participantes, e nos orgulhamos de ter sido companheiro dessa atividade e de acreditar na força da mobilização social do povo brasileiro.
Voltamos exaustos. Na verdade, agora passados mais de dez dias do fim do evento, recém começamos a botar a casa em ordem, pois até agora houve várias “broncas”, como o pessoal aqui em Pernambuco costuma a dizer, pra resolver. Logo no dia seguinte do retorno tínhamos um artigo para apresentar no Congresso da Associaçao Latino-americana de Sociologia (ALAS), que esse ano foi aqui em Recife. E o corre-corre incluiu temas pessoais (como tentar deixar o apartamento em ordem para a desejada visita da família, que coincidiu nessa época) e profissionais, que perpassa também as pendências, ainda existentes, estruturais e políticas decorrentes dessa jornada.
A parte prática dessa maratona se inicia com a chegada de Marie e Pau, que moram em Barcelona. Pousaram em Recife no dia 19 de agosto, no dia 20 voamos para Goiânia, no dia 21 se dá Ato de Inauguração, no dia 22 o começo efetivo da Marcha, numa boa “toada”, de apenas 34 km, diretos, sem pausa pra descanso...
Nos dias seguintes, o despertar geralmente às 4h da madrugada, ou mesmo mais cedo, para haver tempo de um café da manha antes de se estar em fila na estrada às 5h, e dessa forma evitar caminhar sob o sol mais forte do final da manhã no terrivelmente seco Estado de Goiás; respiramos pó e terra que chegam a sangrar o nariz. A variação de temperatura é de clima desértico: frio à noite, calor escaldante durante o dia. A companheirada dos estados do Nordeste, maior presença na Marcha, teve que se acostumar também a essa intempérie.
A massa alvirrubra (e não falo de torcida de futebol), enfileirada, para caminhar ou para comer o arroz-com-feijao de cada dia, com o passar do tempo começa a ganhar nomes, e há mais contato, mais empatia e troca de histórias. Há gente que só ao estar ali vivencia o mais longe que já foi na vida – nunca havia saído de seu Estado e nem de sua cidade; gente que se dedica a cuidar de meninas em risco de prostituição nas suas localidades; gente que trabalha com circo, que fez parte do trajeto em perna-de-pau; gente que canta e toca e quer fazer carreira como músico; gente que recolhe latas de alumínio e acredita que o paraíso deve ser construído aqui na Terra; gente que é atleta, em profissionalização, e até disputa índice olímpico para os Jogos de 2016; gente que mesmo aos 83 anos faz questão de caminhar todos os trechos de Marcha e sabe trabalhar com marretas de 20 kilos; gente que fica sem cobertor durante a noite para ceder-lo aos de fora que parecem ser menos acostumados às dificuldades; gente que planta com a família, que faz farinha de mandioca, que vende, semanalmente, na feirinha do agricultor da sua comunidade.
Uma impressão particular estrangeira, da “companheira Marie”, postada no seu blog, é pertinente:
La mayoría vive en “acampamentos” esperando un trozo de tierra o en “asentamentos”. La vida en comunidad la conocen por eso no les resulta difícil acomodarse y compartir tantos momentos juntos. La unión hace su fuerza, juntos y gracias a estos kilómetros quizás alguien les prestará atención. Una reforma, quieren una reforma. No están solos en la lucha, expertos y lideres políticos llegan a alcanzar los micros. Es en el destino final de la marcha, Brasilia, que se expresa la voz del pueblo. Es aquí en esta ciudad flipada en forma de avión que se encuentran todos los ministerios y entonces las reuniones se suceden. El café ya no se sirve en una botella de plástico transformada en vaso pero en tasitas de porcelana.
É. Foi assim, numa média de 25 km caminhados por trecho que essa gente, a maioria em chinelos-de-dedo, marcou as manhãs de Goiás por mais de duas semanas com bandeiras vermelhas dos agricultores e agricultoras que defendem a luta por uma reforma agrária do século XXI – o projeto político do MLST.
MAIS QUE ROMPER CERCAS
Mas não, essa não é uma crônica romântica para afirmar o dinamismo de uma atividade desse porte, da vitória, do valor do sacrifício e da suposta consagração. Tampouco é uma descrição pessimista das dificuldades enfrentadas, senão uma reflexão quase óbvia, mas necessária, vinda da experiência direta como marchante e como parte de parte da organização, em uma atividade histórica, isso sim, no sentido literal da expressão, para um dos maiores movimentos de luta por reforma agrária do Brasil.
O Movimento de Libertação dos Sem-Terra (MLST) convocou e organizou essa Marcha. Se você não está habituado a temas políticos-agrários do país, perceba que, sim, o MLST e o MST são coisas diferentes. Eu tampouco sou um ativista da reforma agrária, particularmente, mas com uma história ligada à atenção para temas de organização popular, sei que um dos nós da questão (ou gargalos pra usar o jargão político, feinho, da moda no Brasil) é que há dezenas de grupos de luta pela terra no país, porém o MST (para o qual não é preciso abrir a sigla) detém uma espécie de “monopólio” do tema.
Pequeno exemplo: experimente digitar “luta pela terra no Brasil” no Google, e veja quantos resultados, só entre os primeiros, que incluem densos trabalhos acadêmicos, fazem referência direta ao MST. Esta é, sem dúvida, uma organização com uma história fenomenal, exaltada desde Antonio Candido a Eric Hobsbawm, uma indiscutível referência de movimento social e popular para o mundo. Possui uma tremenda estrutura, absolutamente high-profile (utilizando uma expressão gringa em deferência a própria ampla articulação internacional que o MST possui), que perpassa escolas, universidades, uma sólida institucionalização, inclusive.
Mas não é a única organização de luta pela terra no Brasil, não é a única proposta, não centraliza todas as idéias e alternativas para a questão agrária no país. Mesmo assim, para o conjunto da sociedade, ativismo pela reforma agrária é sinônimo de sem-terra, e sem-terra é sinônimo de MST. Não é por acaso que se ignora, dessa forma, uma diversidade de movimentos socioterritoriais, inclusive os de dimensão nacional, que possuem contribuições diferenciadas e igualmente importantes para o debate sobre a terra no Brasil. É verdade que entre esses muitos movimentos a maioria é regional, com atuações fortes em nível de estado. No caso do MLST, porém, a relativa invisibilidade, pelo menos em termos de grande mídia nacional, é ainda mais curiosa, porque o Movimento está organizado em dez estados da Federação e possui um aporte à questão agrária substancialmente – e pertinentemente – diferente da do MST. Isso é ainda revelador de uma situação que parece gerada de maneira consciente tanto pelos formadores de opinião política nessa mesma grande imprensa, como por atores políticos (e ai em nível partidário, no terceiro setor e entre os próprios movimentos populares) que fazem ou eco ao monopólio, ou vista grossa à diversidade de organizações de luta pela terra no Brasil – especialmente quando se trata de abordar suas propostas, suas pautas e contribuições que nem sempre se alinham com as do MST.
Ora, a questão da luta pela terra no Brasil é sempre abordada a partir da ótica do MST, e a referência aos outros movimentos, quando feita, é justamente apenas essa: “os outros movimentos populares”. Mesmo os meios de comunicação progressistas não costumam pautar essa diversidade. Muitos deles, aliás, possuem estrutura de financiamento em parceria com o próprio MST e assim seguem reproduzindo posições limitadas apresentadas como universais.
Senti isso, claro, durante a “Marcha da Reforma Agrária do Século XXI”. Buscar entender a proposta do MLST não foi agenda dos meios, não era de interesse nem dos “progressistas”. Era mais um evento de sem-terra, e não era nem do MST! Mais de mil pessoas caminhando mais de 200 km por mais de 20 dias. Haja estrutura! Haja coordenação! Haja organização! Por que tudo isso? Mas a abordagem midiática (de novo, mesmo a dos progressistas) era a de que algo de sem-terras estava ocorrendo para “chamar a atenção”. E só. Mas a atenção para o que? Para quem? Por que uma proposta de reforma agrária diferenciada da do MST deveria ser explorada? Em que consistiria o mote “reforma agrária do século XXI”? Quer dizer que existe proposta de reforma agrária para além da idéias do MST? Quais são? São pertinentes?
EU LUTO, NÓS LUTAMOS
Desde as lutas messiânicas ao cangaço, passando pelas Ligas Camponesas, a luta pela terra no Brasil nunca cessou. Desde as capitanias hereditárias até os latifúndios modernos – e o agronegócio – a estrutura fundiária, excludente e responsável por desigualdade social no país, vem sendo mantida. Neste cenário, a questão agrária tem se expressado por meio de tensões e confrontos, muitas vezes sangrentos, entre uma massa de despossuídos e os donos da terra quase sempre protegidos pelas leis e pelo Estado. Todo militante social sério tem presente este óbvio: a luta pela terra é fundamental para a efetiva democratização do país. Na década de 70, com os incentivos fiscais dados pelos militares a empresas colonizadoras no Norte e no Centro-Oeste explodiu a violência no campo. Nos anos 80, os sem-terra partem para a ofensiva, buscando a efetivação da reforma agrária pelas ocupações de latifúndios improdutivos, mudando a geografia do campo brasileiro, mobilizando o apoio da sociedade. É ai que o MST alcançou merecido protagonismo, pautou a questão agrária como determinante na política nacional. Mas sua concepção, como a de qualquer ator em qualquer campo da vida, tem limitações. Para o MST, o principal inimigo ainda é o grande latifúndio improdutivo, embora a organização afirma hoje ter uma grande preocupação com a produção nos assentamentos e com a questão ambiental.
Mas isso que o MST levanta hoje, o MLST tem no cerne da sua proposta desde sua fundação. O modelo de reforma agrária vigente foi superado; o principal inimigo não é mais o latifúndio improdutivo, mas sim o agronegócio que articula poderosos interesses econômicos, políticos e sociais, fazendo combate contra a reforma agrária. Uma nova forma de organização econômico-social do meio rural, com a implantação de Acampamentos Produtivos, Assentamentos Inteligentes, Pólos de Desenvolvimento e a Empresa Agrícola Comunitária, ou seja, com o foco na produção a partir de métodos agroecológicos, conforma uma Reforma Agrária do Século XXI que tem em essência a valorização do ser humano e a construção de uma vida digna no campo.
Foi com base nesse projeto que o MLST, cinco anos depois da grande polêmica do quebra-quebra no Congresso – que resultou na indevida, vexatória e mal-explicada condenação moral e penal do Movimento – retorna a Brasília, desta vez depois de uma longa e propositiva Marcha. A “Marcha da Reforma Agrária do Século XXI – Aperte a mão de quem o alimenta” foi uma pesada aposta política do MLST que se provou qualificadora e capacitante. O MLST chamou, organizou e conduziu mais de mil de seus militantes durante 20 dias através 200 km para dar voz e vez a sua pauta de propostas. Na semana de cinco a nove de setembro, depois da longa caminhada até a capital da república, a coordenação nacional do MLST teve uma maratona de reuniões diretamente com os titulares de pelo menos nove ministérios e órgãos federais, para apresentar sua agenda por uma concepção atualizada de reforma agrária, em dia com o século XXI, e ajudar a erradicar a pobreza no Brasil.
Por isso foram tantos quilômetros de pé na estrada, tantos dias de marcha, tanta estrutura e logística. Foi e é por uma causa, pela necessidade de uma reforma, pela importância de mostrar a pluralidade da luta pela terra no Brasil, de valorizar o agricultor familiar que no seu conjunto é responsável por mais de 70% da produção de alimentos no país. Foi e é um convite para que a sociedade brasileira aperte a mão desses trabalhadores e trabalhadoras, reconheça e se alie com quem ajuda a construir soberania nacional, e que o quê se transforme sejam as partes mesmas dessa sociedade, por um país mais justo e livre de miséria. Nós, que também nos transformamos, saudamos todos e todas participantes, e nos orgulhamos de ter sido companheiro dessa atividade e de acreditar na força da mobilização social do povo brasileiro.
*Aleksander Aguilar é jornalista e mestre em Estudos Internacionais.
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