Documento do Centro de Inteligência da Aeronáutica informa fim de desaparecido
Lúcia Caldas Vieira segura um dos poucos retratos do pai que conseguiu guardar
Um pesadelo frequente da dona de casa Lúcia Caldas Vieira, de 64 anos, é com uma imensa fogueira. Ano após ano, desde o dia 16 de janeiro de 1970, a cena é a mesma em sua mente: ela tenta salvar das chamas os documentos, fotos e desenhos que foi obrigada a queimar no dia em que o pai desapareceu. Lúcia é filha do desaparecido político Mário Alves, jornalista e secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Apesar de quatro testemunhas terem presenciado a tortura de Mário no DOI-Codi do Rio, dessa data até hoje, 42 anos depois, o Exército nunca assumiu a prisão do militante.
Em uma lista produzida pelo Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) em 19 de janeiro de 1971 está a primeira informação oficial da ditadura militar brasileira sobre o jornalista desde o seu desaparecimento. O documento, localizado pelo GLOBO no Arquivo Nacional, é uma listagem com nomes de militantes, seus codinomes e suas organizações. Na página 143 estão as informações sobre o militante do PCBR desaparecido um ano antes: na primeira coluna, o codinome pelo qual era conhecido: “Vila”, na última, seu nome completo: Mário Alves de Souza Vieira; no meio, o campo “situação atual” indica: morto.
— Esse documento é mais um dado que mostra que eles não tinham nenhum pudor de fazer uma lista com os nomes dos mortos. Se até hoje eles negam a prisão, como é que o dão como morto? — desabafou a filha.
Lista foi distribuída para outros órgãos
O documento é hoje parte do acervo do Arquivo Nacional colocado para consulta pública. A listagem serviu como fonte de informação para o Serviço Nacional de Informações (SNI), o Centro de Informações do Exército (CEI) e o Centro de Informações da Marinha (Cenimar), e, conforme descrição, tem como assunto “militantes, aliados e simpatizantes das organizações subversivas”.
Mário Alves era baiano e tinha 47 anos quando saiu da casa onde vivia com a mulher, Dilma Borges, na Abolição, subúrbio do Rio. Ele estava acostumado tanto a ser perseguido quanto à vida clandestina desde 1942, quando entrou para o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Preso meses depois do golpe de 1964, foi libertado um ano depois, mas teve que voltar à clandestinidade porque foi condenado à revelia a mais sete anos de prisão. Em 1968, ajudou a fundar o PCBR para seguir o caminho da luta armada.
Em 1970, ao ser novamente preso, Mário foi levado para o DOI-Codi na Rua Barão de Mesquita e torturado durante a noite do dia 16 e a madrugada do dia seguinte. Os presos Raimundo José Barros Teixeira Mendes, José Carlos Brandão Monteiro, Manoel João da Silva e Antônio Carlos de Carvalho ouviram o sofrimento do militante do PCBR ao longo do interrogatório.
No livro “Desaparecidos políticos”, Mendes revelou que presenciou por meio de uma abertura no alto da parede da cela a violência na sala ao lado: “Depois de violentamente espancado... torturado com choques elétricos, no pau de arara, afogamentos, Mário Alves manteve a posição de nada responder... então introduziram um cassetete de madeira com estrias, que provocou a perfuração de seus intestinos e a hemorragia que determinou a sua morte.”
Dilma, mulher de Alves, e o advogado Modesto da Silveira fizeram inúmeros esforços para localizar o militante. Foram enviados pedidos de habeas corpus para todas as Forças na tentativa de descobrir o paradeiro do guerrilheiro, mas nenhum órgão da repressão assumiu a prisão. Devido à busca, Dilma também chegou a ser interrogada.
— Eu e minha mãe ficamos meses separadas. Ela tinha medo de que nos pegassem, e alguém precisava ficar para contar a história — lembrou Lúcia.
As notícias só vieram depois, quando as testemunhas deixaram a prisão e contaram o que presenciaram. Eles apontam entre os torturadores de Mário: o tenente-paraquedista Magalhães, os tenentes Armando Avólio e Luiz Mário Correia Lima e o agente civil Luis Timotéo de Lima. O último também é citado por um estudo da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência como um dos agentes que trabalharam na Casa da Morte em Petrópolis.
Em 1979, Dilma e Lúcia entraram na Justiça contra a União, exigindo a responsabilidade pela prisão, morte e ocultação de cadáver do jornalista com base nos testemunhos. A sentença, favorável à família em 1981, fez de Mário Alves o primeiro caso de desaparecido político em que a União foi responsabilizada.
— Nunca vi o nome dele em nenhum relatório. Esse documento me leva a acreditar que, ao contrário do que dizem as Forças Armadas, há, sim, documentos, e espero que a Comissão da Verdade possa auxiliar nisso — afirmou Ana Maria Müller, advogada do caso.
*Por CAMILA MAIA / Agência O Globo
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